quarta-feira, 12 de agosto de 2009

O ADVOGADO QUE ERA O DIABO

O ADVOGADO QUE ERA O DIABO.
Afonso de Sousa Cavalcanti (Jandaia)
Paramos nosso carro no km 340 da Rodovia 376. O sol de janeiro, do ano de 1980, era muito quente, de tal forma a nos convidar para tomar água ou algo refrescante. O lugar onde paramos havia uma bica d’água e diversos carros estacionados. Logo em seguida aparecia a bela fachada de um restaurante que indicava conforto e formidável serventia de refeições. A hora era propícia e já fazia fila de clientes para o espeto corrido.
Sentamos bem de frente da janela que dava à vista para a bica d’água que vinha da serra. Coincidência ou não, encontramos o Dr. Nando e sua família que vinham em sentido contrário ao nosso. Rapidamente, o Dr Nando narrou:
- Nosso passeio durou poucos dias, pois tínhamos pressa em preparar uns processos advocatícios, inclusive dentre estes processos estava o caso de um conhecido nosso, João Maria, que fora injustiçado no Mato Grosso, exatamente por causa de atividades na avicultura.
Nossa conversa foi longe e ali ficamos por mais de duas horas saboreando guloseimas e tomando umas e outras. Conversa vai e conversa vem, quando de repente aproximou-se de nossa mesa uma senhora octogenária. Novamente o Nando nos fala dela:
– Dona Guilhermina, embora dispense apresentação por seu modo prazeroso de conviver, mas vou falar um pouco dela. É mineira de Varginha, MG. É minha conterrânea e madrinha de batismo. Tenho por ela profunda admiração.
A simpática senhora começou de causos e mais causos, mas houve um que chamou muito nossa atenção. A mineira sabia contar estórias, apesar de ter dificuldades em pronunciar bem as palavras, devido problemas na dentição. Pelo que me recordo bem, Aquela senhora marcou-me muito com este conto.
Dona Guilhermina falava fácil e foi logo narrando. Primeiramente ela nos perguntou:
- Os senhores já ouviram dizer algo sobre o advogado do Diabo?
Nós que estávamos à mesa fomos unânimes em responder-lhe:
- Por favor, conte-nos o acontecido.
Guilhermina tirou os óculos e os colocou sobre a mesa. Parece que ela teve necessidade em não mais ver o acontecido fora – no mundo. A ausência dos óculos obrigou-a a entrar dentro de sua memória e dali arrancaria todas as idéias necessárias para abrilhantar ainda mais aquele enredo moral. Depois disso, Guilhermina juntou as duas mãos e entrelaçou os dedos. Sentou-se firmemente em sua cadeira e apoiou bem seu corpo e seus pés. Agora ela começaria a contar. Sua voz saiu muito firme, tão forte que atraiu a atenção de vários participantes das mesas que estavam mais próximas de nós naquele restaurante. Contou a octogenária:
- um pai de família saiu bem cedo de casa. O destino dele era buscar um serviço, um local de trabalho que trouxesse meios para ajudar na sobrevivência de seus familiares. Precisava angariar algum recurso para sustentar sua família. O lugar onde morava ficava no semi-árido de Minas Gerais. Nas estações mais secas as famílias mais pobres passavam fome e eu soube muitas vezes que por ali a seca matava as criações, as vegetações e mesmo dezenas de pessoas. Os sobreviventes da seca ficavam magros, desnutridos – digamos que com seqüelas físicas e mentais. Aquele pai e seu filho ainda eram pessoas fortes e saudáveis.
- Chega de descrição, disse Guilhermina. Vou contar-lhes logo a estória, não gosto de ficar fazendo voltas.
A narradora de história utilizava muito de gestos, de forma a se levantar da cadeira diversas vezes. Dona Guilhermina prosseguiu:
- A história mineira que narrarei hoje para os senhores, chocou o Arraial do Bom Jesus de Pedregulhos. Foi ali que a coisa aconteceu. Aquele trabalhador percorria estrada afora, até que avistou ao longe e à beira da estrada uma moradia que tinha a seu lado uma venda, onde os transeuntes podiam comprar alimentos. Ainda era bem cedo e o sol brilhava forte, em torno de oito horas da manhã. O viajante se aproximou da casa e ao adentrar à venda foi atendido pela vendedora, que o recebeu calorosamente com um bom dia. A fome já ruía seu estômago e a distância a ser percorrida por ele era grande – o lugar para onde pretendia ir, distava mais de 30 quilômetros. O homem foi logo dizendo:
- quero comer alguma coisa forte que possa forrar bem meu estômago. O que a senhora tem para me servir? A balconista respondeu:
- tenho café com leite e pão e para reforçar posso cozinhar-lhe ovos de galinha caipira.
Prosseguiu Guilhermina:
- Satisfeito com tal indicação, Aparecido pediu:
- Por favor, cozinha para mim meia dúzia de ovos, assim posso alimentar-me agora e ainda sobra um pouco para a viagem.
- Mais do que depressa os ovos foram postos para cozinhar. O café já estava coado e o viajante foi servido a contento. Saboreou lentamente o leite com café que lhe fora servido em um caneco de alumínio. Descascou apenas três ovos, temperou-os com sal e pimenta e os comeu com as rodelas de pão caseiro que Teresa lhe servira. Satisfeito com o serviço prestado, pediu ainda que fossem embrulhados os três ovos restantes, juntamente com mais duas rodelas de pão que sobrava no pequeno cesto. Gentilmente a servente da venda o atendeu.
- Cumprindo o que determina a um homem bem intencionado, Aparecido solicitou a conta a pagar. Em um papel branco foi escrito:
- Meia dúzia de ovos cozidos. Valor a pagar: $1,50 (hum cruzeiro e cinquenta centavos); uma caneca de café com leite e seis rodelas de pão caseiro. Valor a pagar: serventia da casa, sem custos a pagar.
Dona Guilhermina fez questão de esclarecer detalhadamente:
- Aparecido não tinha no bolso um centavo sequer, mas se comprometeu com a proprietária que dentro em breve voltaria e saldaria a dívida. Apôs naquela anotação sua assinatura. Como bom mineiro que honra Minas Gerais não descansaria em paz enquanto não retornasse e efetuasse sua dívida. Aquele homem, mais uma vez pediu desculpas à vendedora:
- Tenha paciência comigo! Vou indo a trabalho. Assim que eu ganhar alguma coisa, estarei de volta para pagá-la.
- Quando a tarde chegou, o viajante novamente teve fome e parando sob a sombra de um velho arvoredo, bem próximo de um riacho – agonizante pela forte seca – descascou os outros três ovos e os comeu com o restante do pão que levava. Tomou água do riacho e pensou:
- Meu Deus! Sou pobre, mas uma hora ou outra vou voltar e saldar esta dívida. Ela ficou registrada em sua memória. Referindo-se a este registro na memória das pessoas, Dona Guilhermina nos chamou atenção:
- A dívida a ser paga por muita gente pobre é a mesma coisa que o pecado – dito pela religião cristã. A dívida a gente paga com dinheiro, trabalho e troca de favores. O pecado só se apaga no momento do perdão e do arrependimento do pecador. Aparecido não mais caminharia leve como vinha de manhã bem cedo, pois era agora um devedor. O pior de tudo, ele não sabia se ganharia para pagar a conta. Se viesse a ganhar alguma coisa, antes mesmo de pagar a dívida contraída na venda, haveria de suprir necessidades anteriores – sua família ficara em casa e passava necessidades várias.
Prossegue Guilhermina a nos prender em seu raciocínio. Diriam os filósofos gregos que ela se amarrava por demais na ironia e na maiêutica socrática. Ironia porque naquele momento ela queria nos questionar sobre possíveis dívidas que nós viajantes – embora de férias e merecedores de um bom descanso – deixamos para os que conosco convivem e que nos servem em serviços mais simples e por isso recebem menos e não podem passear – ter o lazer merecedor. Ela foi narrando como se estivesse defendendo o Aparecido e tirando dele a culpa, o medo de não poder voltar e pagar a dívida. Continuou a boa mineira:
- O sol ainda era muito abrasador e Aparecido avista a fazenda onde buscaria seu serviço e ali passaria um tempo sozinho para depois trazer para junto dele sua família. Em dada fazenda mineira, o serviço é rústico, as tarefas cotidianas são pesadas – de montar a cavalo, levar e buscar o rebanho que faz sua trajetória diária pela caatinga. O pagamento pela peonagem é um quase nada: um pedaço de terra para plantar produtos de subsistência – que vão do feijão, do milho, da mandioca, da abóbora e de outros. Além disso, o peão tem o direito de moradia em um casebre muito simples. Quando o patrão é mais humano, ainda lhe é facultado o direito de ter o leite para os filhos pequenos. O trabalho é de sol a sol e praticamente não poupa domingos e feriados. Quem dita o trabalho é o administrador da fazenda que se obriga a produzir, segundo o pedido do fazendeiro.
Guilhermina parecia cansada. Mesmo assim fazia questão de prosseguir com a narração:
- Com Aparecido a situação não foi diferente. A virtude sempre o acompanhou e por diversas vezes chegou a pensar em voltar atrás, custasse o que custasse, ele voltaria para liquidar aquela pequena dívida. Infelizmente os anos se passaram e ele não o fez. Os filhos vieram, a doença baqueava um e outro membro da família e nada sobrava. A miséria era grande, de tal forma que até mesmo a fé em Deus andava diminuída em seu coração.
Guilhermina nos pediu licença e se dirigiu ao toalete do restaurante. Sua filha a acompanhou, embora a senhora parecesse muito conservada e elegante. Não demorou a voltar. Assim que regressou, assentou-se confortavelmente e disse que gostaria de fazer o desfecho da estória. Os presentes à mesa foram unânimes em ouvir aquele ensinamento. Então Guilhermina nos colocou na segunda parte do método socrático – a maiêutica:
- Lá na venda da estrada, o papel de anotação continuava guardado. 15 anos haviam sido decorridos. Cleonice chama a servente Teresa e lhe diz:
- Muitas contas estão assinadas nestes papéis. Podemos receber. Tive pensando que devemos ingressar na justiça contra nossos devedores.
Prossegue Guilhermina:
- A dívida de Aparecido foi levantada e parecia para Cleonice algo muito fácil de se cobrar. De forma simplória e em raciocínio lento foi falando com Teresa:
- Você serviu meia dúzia de ovos que o Aparecido mandou cozinhar. O tempo decorrido é de quinze anos. É muito fácil fazer a conta e ajuizar um processo judiciário. Vamos começar a calcular: Seis ovos, uma vez chocados têm a chance de tirar seis pintainhos. Estes no período de seis meses serão transformados em seis aves adultas. Na hipótese de haver nascido três machos e três fêmeas, eu venderia dois machos e deixaria para criar um macho e três fêmeas. Três galinhas poedeiras, no prazo de seis meses já terão reproduzido mais de 36 cabeças para encher o terreiro de nosso sítio. As aves continuarão a se multiplicar. Os valores financeiros obtidos através delas somarão fortunas – digamos que milhares de aves adultas que o contador de nosso advogado irá fazer registrar no processo contra Aparecido. As duas mulheres estavam de bem consigo mesmas, mas muito iradas. Procuraram um escritório de advocacia e contrataram o serviço. A dívida a ser paga era uma exorbitância – superior a 3.000.000 de galináceos adultos.
Guilhermina colocou seus óculos e fitou para cada um dos olhares dos que ouviam sua estória. Parece que ela procurava ver na visão de cada um a imagem da culpa que cada ouvinte punha naquele momento de sua narrativa. Ela, em seu interior de psicóloga, creio eu, pensava que todos nós tínhamos alguma culpa e ali alimentamos possibilidades de nos desfazermos dela. Em seguida tirou novamente os óculos e prosseguiu, como se tivesse dado seu recado. Falou-nos:
- Bem, queridos! O oficial de justiça não tardou a procurar Aparecido e lhe entregou a intimação que havia no fórum de Governador Valadares, era um processo contra ele. Seria sua obrigação buscar defesa.
Novamente a narradora parece ter dó de Aparecido e muda o tom de sua voz:
- Coitado do Aparecido! Não tinha onde cair morto. Sua fé que já era frágil, agora tendia a agonizar. À noite teve um sonho: um anjo vestido de negro apareceu-lhe e apresentou-lhe um grande cartaz luminoso. O cartaz estava escrito com letras góticas: “Não se perturbe! Seu advogado será indicado pelo Ministério Público. Apenas compareça ao Fórum de sua Comarca, na manhã de hoje e se certifique do ocorrido”. Assustado ele acordou e percebeu que não era de fato um sonho, mas sim uma visão do além. Na manhã seguinte avisou seu chefe de serviço e foi ter com o pessoal do Fórum. De fato seu defensor estava inscrito, embora ele não conhecesse ninguém. Ali mesmo recebeu a informação que a audiência estava marcada para as onze horas e cinqüenta minutos do dia 19 de março do corrente ano. Mais dificuldades teria Aparecido. A maior delas seria saber o quanto devia e como poderia saldar tal dívida.
- A data chegou. A credora estava acompanhada de seu advogado. O devedor, vestido em vestimentas surradas – envelhecido pelo trabalho e sofrimentos da vida – aguardava, com muito aborrecimento a hora da audiência. Jamais ele havia pensado no vexame que estava submetido, simplesmente porque havia contraído uma dívida de $1,50 (um cruzeiro e cinquenta centavos) para se alimentar. Não conhecia a contabilidade e nem sequer poderia imaginar o quanto seria penoso ter que pagar o valor de 3.000.000 de aves adultas. Ainda bem que ele não sabia raciocinar. Deus reservou a ele, pensamentos simples e humildes.
Guilhermina pôs-se de pé para dar ênfase a seu conto:
- A hora chegou. 1:50 horas indicavam os ponteiros do relógio. O advogado do réu não se fazia presente no recinto. O representante do juiz apareceu e falou com a platéia. Os presentes quiseram tumultuar o ambiente, mas o representante da justiça os conteve. Sem mais e sem menos: 11:58 horas, adentrou o recinto um jovem bem trajado, terno fino, camisa e gravata à altura, rosto barbeado, cabelos bem aparados e penteados, sapatos brilhantes e porte elegante no andar. Caminhou portando uma pasta de couro, tipo executivo, dirigindo-se ao representante da justiça. Os presentes já irritados, ouviram de um deles que falou malvadamente:
- “Advogado sem pressa, atrasado e sem compromisso! Não sabias que teu cliente é devedor. Por pouco punhas tudo a perder!”
Afirmou Guilhermina:
- No meio da irritação de todos, o jovem advogado fitou a todos nos olhos e foi suavemente dizendo:
- Peço-lhes mil desculpas pelo atraso. Meu compromisso com uma cliente tomou-me um pouco mais de tempo. Esta senhora é muito exigente e fui fazer-lhe uma defesa sobre a necessidade de se cozinhar um pouco de feijão para plantar.
A irritação tomou mais pessoas pela ira. Uma senhora que estava à frente e que era parenta da interessada em receber a dívida respondeu ironicamente:
- Advogado imbecil, onde já se viu cozinhar feijões para se plantar?
Cheio de si e iluminado pela dialética negativa daquela participante, o moço da lei falou:
- Muito obrigado, minha distinta platéia! O raciocínio de nossa ouvinte é verdadeiro e brilhante e eu fico comovido. Minha comoção é grandiosa de tal forma que posso concluir rapidamente esta audiência. Frente ao ensinamento, gostaria de saber se ovos cozidos também tiram pintainhos? Tenho dito!”
Guilhermina saiu do raciocínio do advogado e sentou-se para respirar e concluir. Foi dizendo:
- O juiz observou a questão e ordenou:
- Pague-se com juros e correção monetária meia dúzia de ovos cozidos, oriundos de galinha caipira. Retire-se o processo.
Observação: este conto é especial aos alunos de Direito de todos os tempos. Se por ventura forem notados erros de lógica ou mesmo erros históricos e pedagógicos, que nos perdoem os acadêmicos. O que vale é a boa intenção: o jeito de narrar, de argumentar e principalmente a visão que se pode ter sobre a arrogância e a falta de conhecimento.

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